Liga dos Últimos
A cronista Helena Matos andou a reler os jornais portugueses de 1975 e ficou surpreendida.
Contou-me ela: dessa enormidade que foi a vinda de milhares de portugueses das colónias não há uma só reportagem - "nem uma, acredita" - com pessoas dentro. O terramoto social e histórico adivinha-se nas entrelinhas; de terramotos pessoais, nem cheiro. O repórter - estivesse ele cá, à chegada, tivesse ele ido lá, a Luanda, Lobito ou Lourenço Marques - esqueceu-se da arraia-miúda. Os chefes militares e políticos, esses, eram muito entrevistados. Mas os pobres dos retornados ficaram escondidos por trás dos contentores. Houve uma criança que chegou sem os pais? Não sabemos. O relato da morte presenciada do marido? A chave da casa, à qual nunca se voltará, amarrada ao pulso?... Não sabemos, pelo jornalismo português, não sabemos. Bertold Brecht, então em plena glória, poderia ter inspirado os repórteres, que certamente lhe conheciam estas interrogações: "César venceu os gauleses./ Nem sequer tinha um cozinheiro ao seu serviço?" ou "Quem construiu Tebas, a das Sete Portas?/ Nos livros vem o nome dos reis/ Mas foram os reis que transportaram as pedras?"
Porém, os jornalistas liam Brecht pela cartilha instrumentalizada (isto é, liam Brecht como ele queria ser lido): o cozinheiro de César ou os pedreiros de Tebas ainda vá que não vá, porque ilustravam o discurso do momento, o "povo unido", etc. e tal. Mas porque perder tempo com os retornados, se eles estavam ao arrepio da História?Se nem nesses tempos de tanta gente com destino trágico o jornalismo português se dignificou a baixar ao povo, o que dizer de hoje, em dias de modorra?
As pessoas comuns só têm direito a notícia por o azar lhes bater à porta. Ou se, num esforço, elas se tornarem muito canalhas. O próprio do jornalismo é falar de situações extraordinárias.É? Pois então devo ser cliente esquisito. Já o disse uma vez e volto a dizer, porque quem me fascina tem de levar com a minha admiração: o programa Liga dos Últimos, na RTP N, é - entre tudo o que os jornais, rádios e televisões me dão - o lugar onde mais e melhor vejo gente. Definição de gente: pegue-se em José Castelo Branco, é o contrário. Na Liga dos Últimos vi ontem a D. Alice, há 50 anos guarda do campo do Ermesinde, de cuja cama, enquadrada por naperons, posso ver uma baliza. Basta levantar a persiana (empurrando com os dedos, porque a correia não funciona).
E, logo a seguir, ando à procura do cobrador das quotas do Fanhões. Farto dos sócios que não pagam, o sr. Valdemar foi para a Costa de Caparica, deixando o clube desesperado. Todas as semanas, a Liga dos Últimos conta-me histórias destas e mostra-me gente. Dá-me a ideia de que tenho um país à volta.
Ferreira Fernandes
in Diário de Notícias (11 Novembro de 2007)
Contou-me ela: dessa enormidade que foi a vinda de milhares de portugueses das colónias não há uma só reportagem - "nem uma, acredita" - com pessoas dentro. O terramoto social e histórico adivinha-se nas entrelinhas; de terramotos pessoais, nem cheiro. O repórter - estivesse ele cá, à chegada, tivesse ele ido lá, a Luanda, Lobito ou Lourenço Marques - esqueceu-se da arraia-miúda. Os chefes militares e políticos, esses, eram muito entrevistados. Mas os pobres dos retornados ficaram escondidos por trás dos contentores. Houve uma criança que chegou sem os pais? Não sabemos. O relato da morte presenciada do marido? A chave da casa, à qual nunca se voltará, amarrada ao pulso?... Não sabemos, pelo jornalismo português, não sabemos. Bertold Brecht, então em plena glória, poderia ter inspirado os repórteres, que certamente lhe conheciam estas interrogações: "César venceu os gauleses./ Nem sequer tinha um cozinheiro ao seu serviço?" ou "Quem construiu Tebas, a das Sete Portas?/ Nos livros vem o nome dos reis/ Mas foram os reis que transportaram as pedras?"
Porém, os jornalistas liam Brecht pela cartilha instrumentalizada (isto é, liam Brecht como ele queria ser lido): o cozinheiro de César ou os pedreiros de Tebas ainda vá que não vá, porque ilustravam o discurso do momento, o "povo unido", etc. e tal. Mas porque perder tempo com os retornados, se eles estavam ao arrepio da História?Se nem nesses tempos de tanta gente com destino trágico o jornalismo português se dignificou a baixar ao povo, o que dizer de hoje, em dias de modorra?
As pessoas comuns só têm direito a notícia por o azar lhes bater à porta. Ou se, num esforço, elas se tornarem muito canalhas. O próprio do jornalismo é falar de situações extraordinárias.É? Pois então devo ser cliente esquisito. Já o disse uma vez e volto a dizer, porque quem me fascina tem de levar com a minha admiração: o programa Liga dos Últimos, na RTP N, é - entre tudo o que os jornais, rádios e televisões me dão - o lugar onde mais e melhor vejo gente. Definição de gente: pegue-se em José Castelo Branco, é o contrário. Na Liga dos Últimos vi ontem a D. Alice, há 50 anos guarda do campo do Ermesinde, de cuja cama, enquadrada por naperons, posso ver uma baliza. Basta levantar a persiana (empurrando com os dedos, porque a correia não funciona).
E, logo a seguir, ando à procura do cobrador das quotas do Fanhões. Farto dos sócios que não pagam, o sr. Valdemar foi para a Costa de Caparica, deixando o clube desesperado. Todas as semanas, a Liga dos Últimos conta-me histórias destas e mostra-me gente. Dá-me a ideia de que tenho um país à volta.
Ferreira Fernandes
in Diário de Notícias (11 Novembro de 2007)
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